domingo, 15 de setembro de 2013

O dia em que eu morri


O dia em que eu morri
Por  Amaral Cavalcante.

Era um Chevette cinza tinindo de novo o símbolo da minha vida de playboy de araque, nos velozes anos 80. Dava até para pagar as módicas prestações, mas o celerado comia gasolina com fome de pobre. Como eu já morava no luxo da Atalaia, tinha que combinar com o gasômetro cada vez que saía pras bandas da cidade, aquela malfadada conta de tantos quilômetros por litro que sempre me limitava a curtição. Acabou que o tanque criou uma crosta de ferrugem nos vinte mil reis, acometendo o carburador de engasgos incômodos e consequentes insubordinações.

Vinha eu, bêbado e feliz do Iate Club, onde penetrara graças às bondades do amigo Sobó, quando, de repente, já perto da ponte do Poxim, a vista anuviou-se, o sono bateu com força e um resto de consciência me alertou: cara vamos dormir...
Depois da ponte, guinei o Chevetinho para a entrada na beira do rio e estacionei debaixo de uma frondosa árvore. Abri as portas, botei o banco na amorosa posição de amasso, desatei o nó da gravata e sucumbi gostoso.

Na madrugada acordei meio leso, sem saber de mim. Vi pássaros gorjeando em linda algaravia, pingos de luz peneirando-se nas folhas, rumor de ondas diáfanas a cantar chuá chuá na beira do rio, um silêncio sepulcral, luz demais no meu irresponsável despertar... era tão paradisíaco o astral à minha volta que, num ápice, tive certeza de estava morto, no paraíso católico da felicidade eterna, onde todo mundo estará sempre muito bem servido de paisagens lindas, contemplações e insuportável ócio.

Durou segundos esta visão macabra. Botei uma primeira e saí cantando pneus em direção a esta vida besta que consigo segurar até hoje, cheia de alacridades e feiuras, onde ainda me encontro escondidinho das maravilhas do céu.
Beber e dirigir, nunca mais.

Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, em 12 de setembro de 2013.

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