terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Zé Peixe: o folclórico prático do Brasil


Republicado no JC em 30/04/2012. Osmário - Memórias de SE.

Zé Peixe: o folclórico prático do Brasil.
Por Osmário Santos.

Sergipano que faz do mar de Aracaju a sua vida, tipo popular conhecido por todos, ele é um dos mais eficientes práticos do Brasil. Aos 63 anos, continua em plena atividade no trabalho de levar e trazer navios até o porto, evitando pedras, bancos de areia e outras armadilhas do canal, um conhecedor profundo dos acidentes hidrográficos da área.

É conhecido, reverenciado e festejado por marinheiros de todo o país que o conhecem pela sua maneira de trabalhar. Faz tudo nadando. Cumprida a missão de levar a embarcação até a bóiamarítima, no fim do rio, o Zé dá um espetacular mergulho de cabeça e inicia sua volta à terra firme, nadando 6 quilômetros.

Recebeu a medalha do Mérito Serigy, concedida pela Prefeitura de Aracaju, na administração Cleovansóstenes de Aguiar, pelos seus relevantes serviços prestados à comunidade. Possui a medalha e o diploma de Amigo da Marinha. Na administração municipal de José Carlos Teixeira, no governo João Alves Filho, foi construído um posto de salvavidas na Atalaia que recebeu o seu nome, registrado numa bonita placa de bronze. Possui inúmeros documentos que comprovam seus grandes feitos de homem do mar. Muitas vidas foram salvas pela sua coragem e habilidade na água. Por ocasião dos seus 36 anos de vida de trabalho no mar, conforme registro oficial da associação dos práticos, no ano de 1985, a Marinha do Brasil o homenageou com a medalha do Mérito Tamandaré. A condecoração foi por ocasião da comemoração pelo 120º aniversário da Batalha Naval do Riachuelo, na sede do II Distrito Naval em Salvador. A Marinha justificou a homenagem por considerar Zé Peixe o prático que conduz com segurança os navios que demandam ou deixam o porto de Aracaju, afirmando que esse sergipano humilde contribui eficazmente para o cumprimento da missão da Marinha em Sergipe.

Zé Peixe foi tema de matéria na imprensa nacional e até internacional. Foi matéria na Veja, edição de 17 de dezembro de 1976. Na revista Esportes e Náutica de número 11 e outros jornais. Mas é difícil convencê-lo a prestar um depoimento. Depois de alguns dias de muita insistência, ele falou coisas interessantes. É o perfil pelo próprio incrível velho do mar.

Em alto mar.

Este foi o título da reportagem publicada na revista Veja. A seguir, uma parte da matéria, que registra momentos importantes da vida do sergipano que encara com grande seriedade o seu trabalho: “Já se tornou uma tradição. Quando há troca de comando na Capitania dos Portos de Aracaju, entre a fila de autoridades a serem apresentadas ao novo titular do posto está o segundo condutor motorista e mestre de pequena cabotagem José Martins Ribeiro. Trata-se, mais simplesmente, do ‘Zé Peixe’, um dos três integrantes da Corporação dos Práticos de Sergipe – emérito nadador, e, por isso mesmo, permanentemente requisitado para guiar os navios que se atrevam a enfrentar a traiçoeira Barra de Aracaju. E seu trabalho é de uma comovente solidão: a Corporação dos Práticos é tão mal equipada que não conta sequer com uma lancha para levar o prático até os navios. ‘Para que lancha?’, pergunta, porém, Zé Peixe. ‘Eu sei nadar.’”

Espores e náutica.

Com reportagem de Walterson Sardenberg Sobrinhoe fotos de MituoShiguihara, a revista Esportes e Náutica dedicou quatro páginas contando as grandes façanhas de Zé Peixe. Uma parte interessante do trabalho: “Ele é, sem dúvida, um tipo excêntrico: há quarenta anos não usa sapatos. Nisso é irredutível – e não abre exceção nem mesmo para as sandálias de dedo. Recorre à água doce somente para matar a sede. Banho, ele só toma de mar – no que, aliás, dispensa o sabonete. Tais esquisitices, de qualquer maneira, só fizeram aumentar a fama daquele que é tido por muitos como o mais eficiente – e surpreendente! – prático do país: Zé Peixe, um homem franzino de pouca conversa, mas capaz de façanhas homéricas dentro do oceano. Seu nome – aliás, seu apelido — já ultrapassou há muito a Barra do canal de Aracaju, onde já trabalha desde 1947”.

Zé é capaz de deixar qualquer navegante estupefato. Seu cotidiano daria um filme de aventuras. Para começar, ele não tem barco próprio. Por isso, para ir buscar os navios lá fora, pega uma carona em alguma embarcação de Petrobras. A 6 quilômetros da costa, na chamada Boca da Barra, desce. Ou melhor, salta. Dali, nada até uma bóia de sinalização, onde, paciente, senta e espera até que o navio chegue. ‘Já passei dias inteiros ali’, conta, sem emoção, como se o fato de alguém ficar empoleirado numa bóia em alto-mar fosse a coisa mais natural do mundo. Quando o navio aparece, Zé é içado a bordo e assume a pilotagem até o porto de Aracaju. Incrível? Nem tanto. O mais sensacional é o processo inverso, quando Zé Peixe sai para tirar os navios do porto. Nessas ocasiões, práticos convencionais costumam recorrer a um barco de apoio. Afinal, precisam de uma condução para retornar à terra firme. Zé segue com o navio e na mesma Boca da Barra, ao terminar o seu serviço, avisa que ‘descerá’ da embarcação. Como? Mergulhando. Com genial perícia, o sexagenário pula de alturas muitas vezes superiores a 12 metros, deixando atônitos os capitães dos navios. ‘Se sei que outro navio está prestes a chegar, fico esperando na bóia’, conta. ‘Caso contrário, volto nadando mesmo’. Há alguns meses, por exemplo, ele assombrou a dourada juventude da cidade, frequentadora das noites alegres dos bares da moda da Praia de Atalaia – 23 quilômetros da Boca da Barra. Garotões e gatinhas não podiam crer no que viam: de repente, no meio da noite, um ancião saiu do mar encrespado, sabe-se lá vindo de onde, e correu pela areia em direção à avenida, vestindo apenas um surrado calção. Ali, sacou uns trocados de dentro da única vestimenta e tomou o primeiro ônibus que passou. Ninguém entendeu nada.”

Modesta casa.

Ele mora numa casa modesta, pintada de azul e branco,na avenida Ivo do Prado, que escapou de uma possível demolição, na corrida e no avanço imobiliário da cidade, que não dá trégua às coisas antigas. Foi o amor à casa dos pais, fragmento da antiga Rua da Frente, belo postal de Aracaju. A rua dos passeios, dos namoros, da boa brisa, de um tempo de um rio sem poluição.No teto que abriga Zé Peixe, é possível encontrar o verdadeiro calor humano, num ambiente de simplicidade, sem luxo, que cheira a mar e a antiguidade. Zé Peixe não se desfaz dos móveis que foram dos seus pais e, no seu quarto, uma peça enorme, muita madeira e detalhes nas aplicações: “Foi a cama em que nasci”, diz com orgulho.

Início de vida.

José Martins Ribeiro Nunes nasceu no dia 5 de janeiro de 1927, sendo seus pais Nicanor Ribeiro Nunes e Vetúria Martins Ribeiro Nunes, que tiveram seis filhos. Hoje, vivos: José, Antônio e Rita. Seu pai participou do governo Maynard Gomes, em todas as suas fases, ocupando importantes cargos como: secretário Geral do Estado e membro do Conselho Administrativo. Sua mãe, sendo professora, ensinou na Escola Normal. José Martins não era chegado aos estudos. Sua grande fascinação sempre foi o mar. Desde pequeno, tomava banho no rio Sergipe, dava seus bonitos saltos de cabeça da ponte da Marinha e longas braçadas. Aprendeu a nadar “como o meu sobrinho Kiko, o Thiago, que leva jeito para a natação. A gente criado aí no rio aprende sem sentir. Ninguém me ensinou.”

Logo, os pais colocaram o garoto nadador para fazer o primário. “Foi no Colégio Nossa Senhora da Conceição, que funcionava no oitão do antigo prédio da Assembleia, com a professora Glorinha Chaves.” Depois foi fazer o ginásio no Colégio Jackson de Figueiredo. Guardo boas lembranças das professoras Rute Dias de Oliveira e Maria Odete Mesquita, além dos diretores, Benedito e Judite”. Passou pelo Atheneu num curto período, porque “não queria nada com os estudos e levei bilhete azul. Lá só ficava quem estudava mesmo.” Matriculou-se no Tobias Barreto do professor Alcebíades, deixando os estudos no 2º ano científico.

Todos os dias, como faz até hoje, o Zé tomava banho no rio Sergipe. O pessoal que tomava banho nas proximidades da ponte da Marinha dava um grande incentivo ao menino. Seu estilo de nadar, seu comportamento na água, chamava a atenção de todos, e por isso recebeu o apelido de Zé Peixe. “Foi no ano de 1937 que o capitão dos Portos, Aldo Sousa Sá Brito, me batizou com esse apelido. Tinha dez anos e já atravessava o rio Sergipe na maior tranquilidade.” Durante a 2ª Guerra Mundial, Zé Peixe, não ficava em casa, como os demais meninos. “Acompanhava a praticagem da Capitania, com a lancha, comandante Jair.”

Conta um episódio marcante: “Numa noite, dois aviões Catalina apareceram. Um pousou no rio Sergipe e não teve nada e o outro, que pousou no campo, caiu. Tinha um automóvel clareando a pista. Naquele tempo, o campo de aviação era pequeno e na hora que o avião foi pousar, desceu em cima do automóvel. Eram dois aviões americanos anfíbios que patrulhavam a costa. Dormiam no estuário. Nesse dia, houve um atraso e chegaram de noite. Quando vi o avião entrar na água, peguei meu pequeno barco e fui ver o que estava acontecendo. Fui o primeiro a chegar. Ninguém nunca tinha visto um avião pousar no mar de noite. A Rua da Frente estava cheia”.
Zé Peixe ainda lembra do tempo em que os aviões de carreira desciam no estuário do rio Sergipe. “Tinha uma bóia bem enfrente à rua Maruim e, com o progresso, fizeram um flutuante de cimento armado. Era a casinha do avião que a gente chamava, o aeroporto de Aracaju.”

Um herói.

É prático mais por amor à profissão. Pelo que faz ganha pouco. “No mês de maio, tirei 16 mil; junho, 20 mil; e julho, 15 mil. Se não fosse a minha aposentadoria, estava ruim. A aposentadoria é melhor que o trabalho. É a praticagem mais barata do Brasil e isso, por causa de tabelamento. Espero, que o atual capitão dos Portos, consiga melhorar essas taxas, pois está muito interessado no assunto.”
Também pode ser considerado um herói pela quantidade de vidas que já salvou. “Já perdi a conta das pessoas que salvei. Desde menino que salvo gente. Antigamente, aos domingos, quando não tinha salva vidas na Atalaia Velha, eu aparecia e ficava lá por minha conta.” Se o Zé contasse as histórias dos salvamentos, só caberiam mesmo num livro.

Entre seus heroicos feitos, conta um bem emocionante: “Em 1952, houve um raid Natal versus Rio de Janeiro. A guarnição demorou-se aqui na capital, por causa do mau tempo e, numa tarde, no dia 5 de maio, recebi uma ordem do capitão dos Portos, comandante Antônio Maria Nunes de Souza, para mostrar a barra e as condições do tempo lá fora, para eles viajarem no outro dia, na iole Rio Grande do Norte. Saímos à barra a bordo da lancha Atalaia, pertencente à Associação dos Práticos e, de volta, um vagalhão formou-se pela popa, atravessando pela lancha e virando. Naufragaram aí três potiguares, que foram salvos por mim e minha irmã, Rita, trazendo ela um à praia, e eu, dois, assim: um segurando em meu ombro e o outro puxado por uma tábua, que consegui da lancha. Como prêmio ou reconhecimento desse salvamento, embora tivesse sido suspenso pelo comandante dos Portos por não ter salvo a lancha, o povo do Rio Grande do Norte, pelo avião da FAB, me mandou uma medalha de ouro, com os seguintes dizeres: ‘Raid Natal X Rio de Janeiro da iole Rio Grande do Norte. Gratidão do povo potiguar ao herói do naufrágio de Atalaia, José Martins Ribeiro Nunes, maio 1952”. Os dois irmãos heróis ainda receberam o convite e foram de avião passar 15 dias no Rio Grande do Norte. Foram muitas as homenagens e até foram apresentados ao presidente da República. “Fomos apresentados ao presidente Café Filho, numa matinal na Associação Atlética de Natal, eu e a Rita.”

Kiko, a sua grande alegria de hoje.

No ano de 1956, Zé Peixe casou com Maria Augusta de Oliveira Nunes. “Um conhecimento antigo, de família, desde a infância.” Não teve filhos, estando viúvo há quatro anos. Hoje, sua grande alegria é o seu sobrinho-neto Thiago, o Kiko. Diariamente, toda madrugada, Zé Peixe está no rio Sergipe com o menino. É o seu sucessor. Faz tudo que o tio-avô fazia na infância, com uma grande vantagem: recebe as lições do próprio grande mestre das águas, o incrível Zé Peixe.

Publicado em no JORNAL DA CIDADE em 06 de agosto de 1990.
+ Faleceu em 26 de abril de 2012.

Texto reproduzido do site: jornaldacidade.net
Foto: Arquivo TV Sergipe.

Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 13 de janeiro de 2014.

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